O pessimismo
de Henri-Georges Clouzot atinge um dos seus pontos elevados em "Le
salaire de la peur", um dos seus trabalhos mais elogiados e
memoráveis, com o cineasta a desfazer-nos os nervos por completo ao
longo da narrativa onde encontrarmos quatro motoristas a guiarem dois
camiões com uma quantidade elevada de nitroglicerina enquanto
procuram lutar pelas suas vidas e desafiar o destino. Sentem medo e
transmitem-nos isso mesmo, enquanto Clouzot inquieta-nos em relação
ao destino que traçou para os personagens, tendo a ironia final de
mesclar uma cena de um baile com uma morte violenta, onde a banda
sonora parece adensar a tragédia de uma felicidade que não se chega
a concretizar. Diga-se que os
momentos iniciais de "Le salaire de la peur" são
exactamente marcados por esse pessimismo, com a cidade de Las
Piedras, localizada numa zona desértica de uma nação da América
Latina, a ser apresentada como um local pontuado por gentes
provenientes de territórios distintos, sem rumo, pouco trabalho e
ainda menos dinheiro, que parecem encontrar-se num limbo difícil de
sair. Entrar em Las Piedras parece fácil e barato. Sair é
complicado, sobretudo por esta não ser uma cidade dada a
proporcionar grandes condições financeiras aos seus habitantes,
quase que a fazer recordar os momentos em que o personagem
interpretado por Humphrey Bogart andava a pedir esmola no início de
"The Treasure of the Sierra Madre", num desolador espaço
urbano mexicano. Las Piedras surge
como um espaço poeirento, marcado por locais muitas das vezes sem
pavimentação ou estradas de alcatrão, gentes a viver em condições
miseráveis, um aeroporto por onde circula um avião que traz novos
habitantes e a correspondência, com o bar de Hernandez (Darío
Moreno), um indivíduo com um feitio peculiar, nem sempre dado a
grandes simpatias ou demonstrações de afecto, a aparecer como um
cenário central deste território que parece saído do Velho Oeste.
Este bar é frequentado por um bando de indivíduos muitas das vezes
sem posses, entre os quais Mario (Yves Montand), um tipo machista,
pronto a correr riscos e a formar amizades com estranhas figuras,
mantendo um caso com Linda (Véra Clouzot), uma mulher que o venera
apesar do desprezo que este lhe brinda. Yves Montand surge quase
sempre com uma camisola de manga de cava branca, pronto a exibir a
sua descontração, pouca preocupação e uma "estampa"
imponente. Mario trava conhecimento com Jo (Charles Vanel), um antigo
gangster que chega a este local com mais conversa do que dinheiro,
com os melhores tempos da sua vida a já parecerem ter passado,
apesar de isso não o impedir de ter as suas ambições. Jo e Mario
formam amizade, com o primeiro a conhecer Bill O'Brien (William
Tubbs), um indivíduo que outrora participara em golpes ao lado do
personagem interpretado por Charles Vanel que, agora, dirige a filial
da Southern Oil Company, uma companhia petrolífera dos EUA, que
exerce uma enorme influência no local. A Southern Oil Company é
conhecida pelo poder que tem, bem como pelo desprezo em relação aos
direitos laborais e à segurança dos trabalhadores (existe um claro
discurso anti-capitalista), algo que conduz a um acidente, em
particular um incêndio num poço de petróleo, que vitima uma
quantidade considerável de seres humanos, com estes a serem tratados
como mera mercadoria.
Bill inicialmente recusa oferecer
emprego a Jo, apesar do pedido deste último, temendo que o passado
nebuloso fosse descoberto, algo que poderia conduzir ao despedimento
de ambos. Diga-se que Jo é um foco de confusões, sendo pouco
apreciado por Linda e Luigi (Folco Lulli), um italiano que se
encontra a trabalhar nas obras, amigo de Mario. A juntar a estes
personagens temos ainda Bimba (Peter van Eyck), um holandês que,
durante a II Guerra Mundial, foi colocado a trabalhar numa
mina de sal, que agora labora para Hernandez. Todos estes elementos
têm em comum frequentarem ou trabalharem no bar de Hernandez, um
espaço que parece ser uma referência desta pequena cidade. A vida
destes personagens é marcada por muita procrastinação, alguns
arrufos e a devoção de Linda por Mario, algo que a levará a temer
o próximo passo que este vai tomar na sua carreira profissional, em
particular conduzir um camião com uma quantidade considerável de
nitroglicerina. A Southern Oil Company efectua um recrutamento para
seleccionar quatro motoristas tendo em vista a que estes conduzam
dois camiões com nitroglicerina até a um posto mais distante, algo
que permitiria provocar uma explosão que cercearia o fogo no poço
de petróleo. A decisão é arriscada, já que a companhia não tem
veículos especializados para a função, uma situação que conduz
Bill a contratar indivíduos sem grandes laços familiares e muito
pouco a perder, para o caso de poucos darem pela sua falta se
falecerem em serviço. O número de candidatos é elevado, algo
revelador da grande quantidade de gente desesperada que se encontra
pronta a arriscar a sua vida, com a escolha a recair em Mario, Bimba,
Luigi e Smerloff (Jo Dest). Quem se encontra numa situação pior é
Jo, ao ter sido colocado fora das escolhas iniciais, embora, numa
conversa com O'Brien, consiga ficar com o estatuto de substituto.
Nesse sentido, quando Smerloff, um candidato que se tinha safado
melhor do que a maioria, desaparece misteriosamente, logo as atenções
viram-se sobre Jo, com os olhares questionadores a dizerem mais do
que qualquer palavra. Mario fica com Jo no camião, enquanto Luigi
fica com Bimba, com o veículo dos primeiros a partir com trinta
minutos de avanço para evitar que a possível explosão de um destes
meios de transporte afecte o outro. A segurança é quase nula, o
mínimo impacto pode fazer com que os galões expludam, as condições
laborais são praticamente inexistentes embora o salário seja
demasiado tentador para que estes homens desistam. Existe um discurso
crítico em relação às grandes corporações e à conduta das
mesmas em relação aos trabalhadores, com Henri-Georges Clouzot a
efectuar um retrato pouco simpático desta empresa dos EUA que se
encontra em Las Pedras a explorar os trabalhadores locais. Poderíamos
extrapolar para os dias de hoje se a situação poderá ou não ter
mudado assim tanto, com polémicas associadas a algumas marcas e
afins cujos produtos são fabricados em países "exóticos"
a não terem deixado completamente de ser assunto. O próprio
discurso crítico remete para a procura dos EUA em ingerirem-se em
países que contam com petróleo, exibindo uma procura de entroncar a
ficção na realidade. Diga-se que a versão inicialmente exibida de
"Le salaire de la peur" nos EUA foi sujeita a diversos
cortes devido à representação da companhia petrolífera yankee,
com o filme a ser acusado de anti-americanismo (embora Clozout já
esteja habituado a algumas polémicas, ou não tivesse outrora sido
suspenso do seu ofício devido a ter trabalhado na Continental Films,
uma empresa da França ocupada financiada pela Alemanha Nazi, onde
desenvolveu o controverso e recomendável "Le corbeau", uma
obra cinematográfica que está longe de poder ser considerada como
propaganda). A viagem é marcada pelo medo constante sentido pelos
quatro elementos e pela tensão que se gera junto do espectador. As
comparações que efectuam entre Henri-Georges Clouzot e Alfred
Hitchcock fazem algum sentido nas cenas em que Jo, Mario, Luigi e
Bimba partem em direcção a um posto do SOC, com o cineasta a saber
inquietar o espectador, com a presença dos galões com
nitroglicerina a deixar sempre a certeza que a qualquer momento
poderemos assistir a alguma explosão. É impossível que nos
esqueçamos disso, tal como será complicado para Luigi, Bimba, Jo e
Mario não terem a noção que transportam material explosivo que, ao
mínimo erro, promete arrasar com as suas vidas.
As dinâmicas entre os personagens são
essenciais, com todos a serem movidos pelo dinheiro. Jo, até então
mais fanfarrão, parece amedrontar-se, a ponto de num momento de
maior perigo chegar a fugir, deixando Mario a ter de se
desenvencilhar sozinho. Diga-se que esta situação não deixa de ser
algo irónica, sobretudo se tivermos em conta que Mario apresentou
mais dúvidas inicialmente do que Jo, com este último a encorajar o
companheiro. Luigi e Bimba apresentam maior espírito de entreajuda e
companheirismo, com o primeiro a já fazer planos para o futuro,
embora esses desejos devessem ser refreados pela realidade já que se
encontram quase sempre mais perto da morte do que da glória de
chegarem com vida ao destino e finalmente estabilizarem as suas
finanças com o pagamento de dois mil dólares. Pelo caminho
encontram vários percalços. Desde territórios montanhosos e
arenosos, passando por estradas que obrigam a uma velocidade mínima
ou pelo menos a concentração
necessária para utilizar um ritmo contínuo que não faça o
camião saltar um pouco e tudo explodir, até uma plataforma composta
por tábuas de madeira cujos alicerces despertam pouca segurança,
entre outros exemplos. A cinematografia é exemplar, quer a explorar
os espaços da cidade de Las Piedras e exibir a atmosfera desoladora
que rodeia a mesma, tal como o forte calor e as parcas condições
que oferece aos cidadãos, mas também nas cenas de maior
inquietação. Veja-se quando se foca nas rodas a atravessarem a
perigosa plataforma constituída por tábuas de madeira, enquanto
Bimba e Luigi procuram, em enorme espírito de entreajuda, fazer com
que tudo corra bem. Quando uma tábua se parte, os nervos destes dois
homens parecem ficar em franja, tal como os do espectador, mas Luigi
logo exibe o seu enorme voluntarismo, algo que não irá acontecer
entre Jo e Mario. A viagem de Jo e Mario é sempre mais atribulada,
tendo como ponto alto a entrada do veículo numa cratera que se
encontra inundada por petróleo que ameaça fazer com que o camião
fique encalhado lá no meio. Esperamos uma decisão mais humana mas o
espírito de sobrevivência fala mais alto, com estes homens a
procurarem manter as suas vidas no meio deste território inóspito.
A presença de nitroglicerina conduz a que Clouzot crie algumas cenas
inquietantes, com boa parte desta jornada pelas estradas a ser
marcada pelo medo dos personagens e o nosso em relação ao destino
dos mesmos, com o cineasta a saber criar o receio junto do espectador
ao mesmo tempo que permite explorar a reacção destas figuras diante
de situações extremas e pelo caminho questionar-nos sobre o que
faríamos num caso idêntico. Não é um caso fácil, com cada
elemento a ter de confiar a sua vida ao parceiro do lado, com o
quarteto de actores a evidenciar-se a interpretar estes personagens
de personalidades distintas. Peter van Eyck é aquele que surge
inicialmente mais lacónico, atribuindo ao personagem que interpreta
alguma frieza que se parece conjugar na perfeição com o
voluntarismo e simpatia que Folco Lulli concede a Luigi. Este é um
italiano que trabalha nas obras cujas parcas condições laborais
conduziram a que os seus pulmões estejam queimados de cimento, algo
que, a continuar assim, poderá levar à sua morte. No entanto, os
elementos em maior foco são quase sempre os personagens
interpretados por Yves Montand e Charles Vanel (um colaborador
habitual de Clouzot). Yves Montand pelo estilo meio despreocupado,
meio confiante, algo machista e irreverente, pronto a tentar sair do
buraco em que se encontra a sua vida, parecendo ter em Jo um líder
apesar de facilmente perceber que este homem está longe de
transmitir a confiança que poderia esperar do mesmo, algo que vai
causar algumas fissuras entre ambos durante a viagem. Essa situação
é visível quando encontramos Jo a fugir, ou Mario a tomar uma
decisão moralmente questionável para preservar a sua existência.
Charles Vanel surge como um elemento estranho que se insere no
interior deste espaço citadino enquanto arranja alguns problemas,
com o actor a interpretar de forma sublime esta espécie de
manda-chuva em decadência, cujos hábitos não se adequam ao seu
estado actual, algo visível quando a meio da viagem começa a
demonstrar os seus receios. O medo consome-o. Diga-se que todos os
personagens, de maior ou menor forma, acabam por nutrir este
sentimento, embora seja mais saliente em Jo, com este a temer o final
da sua vida.
O calor é latente, as condições para
circular com os camiões são pouco recomendáveis, numa obra que
mescla temáticas presentes em obras como "They Drive By Night",
associadas aos perigos vividos pelos camionistas, embora de forma
mais crua e intensa do que o filme de Raoul Walsh, mas também "The
Treasure of Sierra Madre", onde a ambição toldou muitas das
vezes o discernimento do personagem interpretado por Humphrey Bogart.
No caso de "Le salaire de la peur", o medo e a ambição
descontrolam estes personagens que são praticamente obrigados a ter
nervos de aço para cumprirem os seus objectivos. As relações entre
estes homens são marcadas por alguns momentos que facilmente ficam
na memória. Veja-se quando encontramos Luigi num momento de maior
fricção com Jo no bar de Hernandez, ou quando o personagem
interpretado por Charles Vanel decide subir um espaço íngreme em
fuga, ou as rodas de um camião são colocadas em destaque quando o
veículo encontra-se a atravessar uma zona marcada por tábuas de
madeira, algo que realça que ao menor deslize poderemos ter a morte
de alguns personagens, ou quando Bimba lidera a procura de destruir
um pedregulho com nitroglicerina para desobstruir o caminho, um acto
que pode colocar a vida de todos em perigo, entre outros episódios.
Temos ainda os magníficos momentos finais, emocionalmente
arrasadores e surpreendentes, que atomizam alguma ideia que
poderíamos ter em relação à felicidade de alguns personagens, com
Clouzot a espelhar uma visão desencantada que nos assola a alma após
o término de "Le salaire de la peur". Neste universo
narrativo dominado maioritariamente por personagens masculinos, a
única figura feminina em realce é Linda, interpretada por Véra
Clouzot, a esposa do cineasta, com esta a incutir alguma sensualidade
e candura a um elemento que maioritariamente é desprezado por Mario.
Veja-se quando despreza a procura desta em evitar que o mesmo parta
(atirando-a porta fora em direcção ao chão), ou a trata como se
fosse um mero objecto, embora Linda continue a manter uma enorme
devoção para com este homem. Apesar de ser praticamente a única
mulher em destaque, Linda surge também como aquela que nos desperta
mais simpatia, que parece ter melhores intenções e boa índole
(embora a representação dos mexicanos esteja longe de ser
simpática) numa obra cinematográfica marcada por uma atmosfera
negra, onde a procura pelos protagonistas em melhorar as suas
condições de vida prepara-se para sair demasiado cara. Estão longe
de ser heróis altruístas, pensando sobretudo no seu bem estar, com
Clouzot a exibir mais uma vez algum pessimismo em relação ao ser
humano. Já tinha sido assim em "L’assassin habite au 21"
e "Le corbeau", onde qualquer um poderia ser o suspeito,
tal como seria em "Les diaboliques", uma obra onde a única
personagem capaz de despertar alguma simpatia tem um destino pouco
feliz, ou em "La vérité", onde a imoralidade parece
rodear as várias figuras que pontuam a narrativa, algo que se repete
em "Le salaire de la peur". Inspirado livremente no livro
homónimo de Georges Arnaud, "Le salaire de la peur" surge
como um drama tenso, marcado por uma enorme crueza, personagens
complexos que se encontram longe de serem exemplos a seguir e uma
cinematografia capaz de se ajustar a este ambiente negro e
inquietante, onde a qualquer momento esperamos uma explosão, seja
esta provocada pela nitroglicerina ou pelos sentimentos, com
Henri-Georges Clouzot a criar uma obra cinematográfica sublime.
Título original: "Le salaire de la peur".
Título em Portugal: "O Salário do Medo".
Realizador: Henri-Georges Clouzot.
Argumento: Henri-Georges Clouzot e Jérome Geronimi.
Argumento: Henri-Georges Clouzot e Jérome Geronimi.
Elenco: Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eyck, Folco Lulli, Véra Clouzot, William Tubbs.
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