A carreira de
Ang Lee conheceu um dos seus pontos mais altos com "Se, jie",
um thriller marcado por enorme classe, erotismo, espionagem e
sentimentos à flor da pele, que nos seduz, conquista, inebria e
envolve. É uma das grandes obras do género lançadas neste ainda
curto século mas também um dos trabalhos mais conseguidos de Ang
Lee, com o cineasta a ser capaz de explorar com igual eficácia a
trama relacionada com a missão desenvolvida pela protagonista e o
grupo no qual se inseria, a personalidade dos personagens principais,
sempre com enorme atenção à representação do período histórico,
quer a nível dos cenários, quer a nível do guarda-roupa, quer a
nível do contexto político e social. Tendo como pano de fundo
locais como Hong Kong e Xangai, durante o período a rondar 1938 e
1942, "Se, jie" pode conter alguns anacronismos mas nem por
isso deixa de ser um thriller brilhante e envolvente, marcado por uma
história onde um estranho desejo se desenvolve e um assassinato é
planeado de forma demorada. A história começa por nos apresentar a
Wong Chia Chi (Tang Wei) a jogar mahjong com um grupo de mulheres até
se dirigir a um café onde se nota claramente que está a comunicar
em código. Durante o jogo de mahjong, assistimos desde logo à
meticulosa utilização dos close-ups por parte de Ang Lee, com este
a ser capaz de utilizar a expressividade da sua protagonista ao
serviço da narrativa, ao mesmo tempo que deixa a câmara de filmar a
fitar estas mulheres enquanto jogam. Por vezes a câmara move-se
repentinamente, por vezes fica estática diante de um rosto, embora
pareça sempre certo que dentro destas mulheres, Chia Chi é aquela
que parece apresentar algum desconforto. Depois do telefonema, a
história recua até 1938, data em que conhecemos Wong Chia Chi,
inicialmente uma jovem e tímida estudante da Universidade de Lingnan
que viajou para o território de Hong Kong, após o pai ter partido
com o irmão desta para o Reino Unido, prometendo levá-la mais
tarde. Esse desiderato não acontece, com esta a partir da China para
Hong Kong, enquanto a Segunda Guerra Sino-Japonesa encontra-se a
afectar a vida de todos. Cinéfila, inteligente, algo ingénua em
relação à vida mas informada em relação ao mundo que a rodeia,
Wong Chia Chi procura integrar-se no meio universitário onde conhece
Kuang Yu Min (Wang Leehom), um estudante patriota que a convida a
integrar o novo grupo de teatro. Esta nunca representou, ao contrário
de Lai Shu Jin (Chu Chih-Ying), uma amiga e colega que integrava a
companhia de teatro feminina. Estas juntam-se ao grupo, com Chia Chi
a impressionar tudo e todos com a emotividade que transmite, assim
como Yu Min, um indivíduo que procura exaltar o patriotismo chinês.
No final da peça, o público grita "A China não pode ceder",
com o grupo a conseguir o objectivo de incitar o espírito de luta
contra o Japão. É então que a chegada de Yee (Tony Leung
Chiu-wai), um indivíduo conhecido por colaborar com Wang Jingwei, o
futuro líder do Governo colaboracionista chinês, conduz a uma
mudança no quotidiano destes personagens. Yee é descrito como um
indivíduo favorável ao Japão, capaz dos actos mais hediondos para
manter o seu estatuto de poder, embora nunca vejamos este a colocar
em prática as suas "habilidades". É então que o grupo
decide eliminar Yee de forma a conseguir na prática vingar-se de um
indivíduo que consideram ser traidor da China. O plano passa por
instalarem-se temporariamente numa habitação e fingirem que Wong
Chia Chi e Auyang Lingwen (Johnson Yuen) formam um casal. Estes
assumem os nomes de Srª e Sr. Mak. Ela é uma dona de casa, ele é
um homem de negócios do ramo das exportações e importações.
Sorte ou azar, Chia Chi forma amizade com a Srª Yee (Joan Chen),
participando nas partidas de mahjong com esta e as amigas,
aconselhando um alfaiate, locais para passear e restaurantes à
esposa do alvo destes personagens.
Os Yee chegaram recentemente a Hong
Kong, tendo ainda formado poucas amizades, em parte devido à atitude
cautelosa do personagem interpretado por Tony Leung. Este pouca
abertura dá a Chia Chi, parecendo ter todos os seus movimentos
acautelados de forma a não ser surpreendido por algum atentado à
sua integridade. Passado um mês, o grupo continua sem conseguir
cumprir os seus intentos, algo que gera algumas tensões internas a
ponto de se temer o pior. Um convite para ir a um alfaiate e jantar
por parte de Yee a Chia Chi demonstra um interesse inesperado deste
na jovem, algo que traz uma reviravolta na conjuntura do grupo e na
missão. Yee é um indivíduo discreto, aparentemente calmo e
ponderado que esconde dentro de si um lado mais violento, embora se
deixe atrair pela protagonista, um sentimento que inicialmente não é
recíproco. A aproximação deixa os revoltosos entusiasmados mas
este sentimento logo é esbatido quando o casal Yee tem de regressar
a Xangai devido ao facto do personagem interpretado por Tony Leung
ter sido promovido, encontrando-se encarregue das operações de
espionagem de Wang Jingwe. A operação do grupo sai frustrada. Em
1942, Chia Chi reencontra Kuang em Xangai. Este agora é um agente
secreto ao serviço do KMT que procura lutar contra a ocupação
japonesa do território. A ocupação é exposta desde logo em
situações como a protagonista a passar a ter aulas em japonês, mas
também na dificuldade a nível de circulação de bens e uma
apertada segurança, com Ang Lee a atribuir características
opressoras a este território de Xangai. Chia Chi é incitada por
Kuang a retomar a missão e reintegrar-se no círculo dos Yee. A
protagonista recebe ordens estritas que não pode
falhar, caso contrário o seu destino será o mesmo das suas
antecessoras: a morte. Yee não apresenta contemplações para com os
traidores pelo que esta terá de ter um imenso cuidado para conseguir
seduzir este homem a um ponto em que este baixe a guarda e seja
possível os elementos ligados ao KMT assassinarem-no. A sedução
demora mas é conseguida. Inicia-se um jogo de parte a parte, com Yee
a utilizar a força para conseguir os seus intentos. O primeiro acto
sexual entre ambos é brutal e doloroso. Este ata as mãos de
Chia Chi com o seu cinto e penetra-a violentamente. Posteriormente
assistimos a cedências de parte a parte, mas também uma maior
intimidade, com Tony Leung e Tang Wei a protagonizarem alguns
momentos mais quentes e sexualmente explícitos, enquanto os
personagens que interpretam parecem começar a nutrir estranhos
sentimentos um pelo outro. Ela continua a reunir-se com os elementos
que resistem contra a ocupação japonesa e os colaboracionistas,
chegando a descrever algo repugnada os actos sexuais que tem de
praticar com Yee. Ele aos poucos parece começar a nutrir algo mais
pela protagonista do que simples desejo sexual e de dominar uma
mulher que inicialmente lhe parecia resistir. As relações sexuais
entre ambos, excepção feita à primeira, são marcadas por algum
erotismo, com Ang Lee a filmar as mesmas com um misto de realismo e
sensualidade. Dois corpos
unem-se, estranhos sentimentos reúnem-se e dois personagens
misteriosos entregam-se aos prazeres e dores que acompanham os seus
gestos. Ele quer submetê-la mas acaba por se deixar envolver. Ela
quer eliminá-lo mas parece gradualmente perder a coragem para esse
acto. Tang Wei surge sublime como esta mulher misteriosa e
inteligente, capaz de se envolver numa intriga perigosa ao mesmo
tempo que exibe uma série de fragilidades. O seu rosto transmite uma
candura e fragilidade que tornam ainda mais impressionante o espírito
de sacrifício desta mulher, uma estudante universitária que aos
poucos se deixa seduzir pelos ideais nacionalistas de Kuang Yu Min. O
seu empenho e lealdade à causa raramente são colocados em causa, a
ponto desta ter actos sexuais com Liang Junsheng (Lawrence Ko), um
colega do grupo, o único a ter experiência do foro sexual, de forma
a perder a virgindade e assim não estragar o disfarce. As relações
sexuais desta com Junsheng são marcadas por uma enorme frieza, com
esta a demonstrar um desconforto notório, embora demonstrem o quão
longe esta se encontra a ir para continuar com o disfarce e concluir
o plano para eliminar Yee. A manutenção do disfarce é essencial
para a vida desta e a missão não correrem perigo. Ang Lee deixa
sempre saliente que a vida destes corre perigo, bastando um pequeno
deslize para todos os planos se desmoronarem e todo o esforço
despendido ir por água abaixo. É latente a tensão de alguns
momentos entre Yee e Chia Chi, com o primeiro a ser um enigma muitas
das vezes difícil de ler, enquanto a segunda pode a qualquer momento
"espalhar-se ao comprido" e revelar mais do que deve.
Tony Leung, um dos actores mais
talentosos da sua geração, consegue incutir um misto de frieza,
brutalidade e dissimulação a Yee, mas também alguma sobriedade e
capacidade de exprimir sentimentos mais amigáveis. Quando o
encontramos a oferecer uma joia caríssima a Chia Chi percebemos que
nutre algo mais por esta do que apenas desejo, tal como aos poucos
percepcionamos que a relação entre estes dois desemboca em algo
mais complexo do que poderia inicialmente aparentar. Ela tem tudo
para o odiar. Ele apenas a parece desejar. Aos corpos junta-se a
união de sentimentos e a certeza que esta relação pode correr mal,
ou ambos não tivessem objectivos e ideais dicotómicos. Yee
representa um elemento alinhado com os japoneses, que pensa sobretudo
nos seus interesses e manutenção do poder. Os actos violentos e
interrogatórios que protagoniza demonstram bem a sua frieza, com a
sua brutalidade a ficar desde logo exposta de forma paradigmática no
primeiro acto sexual com Chia Chi. Esta é uma jovem inicialmente
algo naïve em relação a todas estas questões relacionadas com a
política e espionagem, transformando-se ao longo do filme numa
mulher confiante, deslumbrante e aparentemente fria. Aos poucos,
através de uma identidade falsa, esta parece começar a descobrir o
seu próprio "eu", a definir a sua própria personalidade,
ideais e modos de agir. É certo que tem directrizes a seguir, mas
muito do que alcança deve-se à sua inteligência e capacidade de
improvisar embora no último terço nos surpreenda com um acto que
pode ser considerado de amor (não revelaremos aqui se à causa ou a
Yee). Diga-se que, embora lutem por causas distintas, em alguns
momentos Yee e Chia Chi, parecem apresentar mais semelhanças do que
divergências. Ambos procuram ser frios, calculistas e pouco dados a
sentimentalismos excessivos, mas essa situação nem sempre é
concretizada por estes personagens solitários. A dinâmica entre Tony Leung e Tang Wei é sublime, com
Ang Lee a conseguir ainda explorar o conturbado contexto histórico
que envolve este thriller onde não faltam elementos de espionagem,
erotismo e drama, num território de Xangai a lidar com a ocupação
japonesa. Alguns elementos colaboram com os japoneses, outros lutam
contra a sua presença, mas todos parecem ser peões do destino e dos
próprios desejos. Chia Chi e Yee em determinado momento parecem
ceder ao desejo, com Ang Lee a filmar muitas destas cenas com um
erotismo e beleza latentes, com a própria iluminação a contribuir
para a atmosfera sedutora que rodeia algumas destas cenas. Já o
contexto é apresentado em elementos como a peça de teatro
nacionalista, o filme dos EUA que é interrompido, a presença dos
ciclo-riquexós, o guarda-roupa dos personagens, as mudanças
políticas e educacionais, as dificuldades em adquirir alguns bens, a
existência de um mercado negro bastante activo, embora existam
alguns anacronismos à mistura que são facilmente desculpáveis
perante uma obra cinematográfica sublime. Diga-se que o próprio
fascínio de Ang Lee pelo cinema e as relações conturbadas é
visível na figura da protagonista, um cinéfila, mas também pelos
filmes em exibição, com "Lust, Caution" a brindar-nos com
um poster de "Suspicion" de Alfred Hitchcock, mas também
da protagonista a assistir a Ingrid Bergman em "Intermezzo".
Diga-se que a história de Chia Chi até está mais para ser
entroncada em "Notorious" de Alfred Hitchcock, na qual a
protagonista tem de seduzir um elemento nazi, algo que coloca a sua
vida em perigo no caso das suas reais intenções serem descobertas.
Existem alguns traços noir em "Lust, Caution", algo que
vai desde os personagens moralmente ambíguos à atmosfera de malaise
que rodeia o enredo, passando pelo próprio cinismo inerente às
personalidades e actos destes elementos. Ang Lee atribui sempre algum
mistério ao destino da dupla de protagonista, deixando-os sempre no
limiar do risco ao mesmo tempo que nos envolve para o interior desta
história marcante.
Existe um misto de tensão e erotismo a
rodear "Lust, Caution", mas também de medo e sedução,
com Ang Lee a explorar um universo narrativo onde ainda existe espaço
para diversos elementos secundários sobressaírem. Veja-se o caso de
Joan Chen como a esposa de Yee, uma mulher aparentemente simpática
que passa boa parte dos seus dias a jogar mahjong com as amigas, ou
Wang Leehom como Kuang Yu Min, um personagem idealista que parece
demonstrar interesse pela protagonista embora apenas concretize o
mesmo de forma tardia. Chia Chi também parece
demonstrar interesse por Kuang Yu Min, mas a causa que ambos defendem
sobrepõe-se sempre aos sentimentos que escondem um pelo outro. O
argumento do filme, baseado no livro "Sè, Jiè" de Eileen
Cheng, é competente a explorar os intrincados relacionamentos que
envolvem os personagens, mas também a evolução que estes
apresentam a nível de personalidade e as mudanças sociais e
políticas que acompanham as suas histórias. O contexto histórico é
fulcral para compreendermos o comportamento destes personagens. Yee
procura defender a posição que conquistou, sendo conhecido pelos
seus actos implacáveis perante os elementos revoltosos, chegando ao
ponto de expor oralmente alguns dos seus feitos, embora
nunca vejamos os mesmos. O poder deste homem aumenta com o avançar
da narrativa, embora as suas cautelas em relação a Chia Chi
diminuam a um ponto que a sua vida parece estar mesmo em perigo.
Chia Chi começa como uma jovem inexperiente na representação que
aos poucos se embrenha no mundo da espionagem. É inteligente, leal e
disposta a tudo para cumprir os seus intentos, mas a frieza que lhe é
exigida por vezes parece difícil de manter. As mudanças desta
personagem são desde logo visíveis no contraste das roupas e
maquilhagem que apresenta quando a encontramos na universidade e
durante os momentos em que se faz passar pela Srª Mak. Na
universidade surge simples, com o rosto descoberto, praticamente sem
maquilhagem. Como Srª Mak surge com os lábios e unhas pintados de
vermelho, mas também uma atitude mais confiante. Essa confiança é
desde logo visível no primeiro jantar que tem a sós com Yee, onde a
própria banda sonora remete para uma atmosfera de maior intimidade
entre ambos, com as duas partes a parecerem estar em "missão de
reconhecimento". O jantar apresenta um misto de descontração e
tensão, tal como o momento em que ficamos na expectativa se este vai
ou não entrar na casa de Chia Chi, algo que contrasta com a
cacofonia de sentimentos expostos nas cenas de maior erotismo entre
ambos. Ang Lee explora a história destes dois com a complexidade e
ambiguidade que a mesma merece. Cada acto sexual entre ambos está
longe de ser gratuito, com estas cenas a serem fulcrais para exporem
os estados de espírito do casal. Começa com uma cena violenta até
gradualmente entregarem-se aos prazeres carnais e partilharem
sentimentos. É certo que Chia Chi odeia Yee mas, aos poucos, este
sentimento parece mesclar-se com outros mais benignos em relação à
figura do personagem interpretado por Tony Leung. Seria possível que
a dupla de protagonistas depois de tantos actos sexuais e momentos em
conjunto não começasse a sentir algo mais? Ang Lee responde-nos a
isso, sempre sem deixar de lado alguma da ambiguidade que envolve os dois protagonistas, mas não vamos aqui revelar o
desfecho do filme. O cineasta tem em "Se, jie" uma das suas
obras mais recomendáveis, provavelmente não tão popular como
"Crouching Tiger, Hidden Dragon", mas talvez seja um dos
melhores exemplos onde ficamos perante a perícia de Ang Lee em
controlar os ritmos da narrativa, em fazer-nos preocupar com os
personagens que habitam a mesma ao mesmo tempo que é capaz de
aproveitar o talentoso elenco que tem à disposição. "Se, jie"
surge assim como um filme capaz de mesclar de forma competente
espionagem e erotismo, ao mesmo tempo que nos coloca diante uma dupla
de protagonistas complexa ao longo de uma obra cinematográfica que
facilmente nos seduz, seja pelas suas imagens, seja pelos seus
valores de produção, seja pelo seu argumento, seja pela sua banda
sonora sublime, seja pelo talento de Ang Lee aqui exposto numa
magnitude assinalável.
Título original: "Se, jie".
Título em inglês: "Lust, Caution".
Título em Portugal: "Sedução, Conspiração".
Realizador: Ang Lee.
Realizador: Ang Lee.
Argumento: Hui-Ling Wang e James Schamus.
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai, Tang Wei, Joan Chen, Wang Leehom.
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai, Tang Wei, Joan Chen, Wang Leehom.
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