Myrtle Gordon
(Gena Rowlands), a protagonista de "Opening Night", é uma
actriz temperamental que apresenta claros problemas em lidar com o
avançar da idade, fumadora e pronta a beber o seu copo de whisky.
Esta prepara-se para protagonizar "The Second Woman", uma
peça de teatro, onde interpreta Virginia, uma mulher que lida
praticamente com os mesmos problemas que os seus, entre os quais o
avançar da idade, o consumo excessivo de álcool, más decisões e relacionamentos sentimentais falhados no passado. Os momentos iniciais do filme estabelecem-nos
desde logo a entrada desta em palco, antecedida por um copo de bebida
alcoólica, até Cassavetes nos apresentar ao palco e ao público, o
qual parece idolatrar Myrtle. Quando Nancy, uma fã de dezassete anos
de idade, é atropelada após perseguir o carro de Myrtle, a
protagonista não consegue esconder um enorme sentimento de culpa e
perturbação. A cena é marcada por chuva carregada, tonalidades
frias e uma morte que se aproxima após um momento de excessiva
adulação, onde o rosto de uma jovem prepara-se para afectar a alma
daquela que idolatrara em vida. Para todos a vida continua
normalmente, mas para Myrtle parece óbvio que este episódio
marcou-a. Essa situação é notória quando começa a alucinar com
esta jovem, ou será que está possuída pela mesma, ou terá criado
uma versão da falecida no seu interior que procura recordar como a
sua faceta mais nova? Aos poucos Myrtle entra numa espiral
descendente a roçar a loucura e paranoia, regada com muito álcool e doses de
nervosismo em quantidades generosas, algo que se repercute nas suas
interpretações na peça de teatro. As barreiras entre o teatro e a
vida real diluem-se em "Opening Night", com Myrtle a ser a
principal força motriz desta quebra, com o primeiro a influenciar o
seu quotidiano por considerar insuportável interpretar uma mulher
que se encontra a lidar com as consequências do envelhecimento, ao mesmo
tempo que os seus problemas pessoais afectam o desenvolvimento do
espectáculo teatral. A rodear Myrtle encontram-se elementos como
Manny Victor (Ben Gazzara), o indivíduo responsável por realizar a
peça, um indivíduo casado com Dorothy (Zohra Lamper), procurando a
todo o custo mimar a sua estrela para que esta consiga cumprir com as
suas funções na representação; Gus Simmons (John Tuell), o intérprete do ex-marido de Virginia; Maurice Aarons (John Cassavetes),
um
indivíduo que parece ter mantido um caso com a protagonista na vida
real, interpretando o segundo esposo de Myrtle em "The Second Woman"; Sarah Goode (Joan Blondell), a
argumentista da peça, uma mulher já nos seus sessenta e poucos anos
de idade que procura aconselhar Myrtle da melhor maneira possível, embora nem sempre tenha paciência para aturar os devaneios da vedeta;
entre outros elementos. Boa parte do enredo desenrola-se em volta do
palco de teatro e dos seus bastidores, quer nos ensaios, quer durante
a peça, com o filme a deixar-nos também perante este espectáculo e
a sua preparação. Myrtle é uma diva em decadência que se recusa a
aceitar dizer todas as falas que estão no argumento, procurando
adaptá-las à sua pessoa de forma a não ficar com o estigma de
mulher envelhecida, temendo que comecem a tomá-la como tal, criando
algumas fissuras no interior do grupo responsável pela peça.
"Opening Night" deixa-nos não
só perante a vida desta actriz, mas também perante a peça e as
mutações que esta por vezes conhece devido às liberdades dos
actores, com Myrtle a interpretar uma mulher casada com Marty que
decide visitar o primeiro marido, apresentando alguns problemas em
lidar com o avançar da idade. A dinâmica entre John Cassavetes e
Gena Rowlands surpreende pela intensidade emocional que os seus
personagens colocam a interpretar Marty e Virginia na peça de
teatro, tanto sendo capazes de protagonizar momentos de alguma tensão
como de algum humor, com o último terço a surpreender pela forma
como esta mulher consegue sobressair mesmo quando se encontra num
estado lastimável. Myrtle decide muitas das vezes desrespeitar o
argumento, desafiando o mesmo e a si própria, procurando que a
personagem que interpreta não caia nos estereótipos associados ao
avançar da idade da mulher, embora seja afectada pelos mesmos. Fora
dos palcos encontramos Myrtle em constante queda, entrando num abismo
emocional difícil de sair, algo que gera a preocupação geral. Gena
Rowlands tem uma interpretação arrasadora como Myrtle, uma actriz
talentosa que tem problemas em aceitar a passagem do tempo,
digladiando-se contra os seus fantasmas interiores, ao mesmo tempo
que se afunda numa rotina perigosa de excesso de álcool, tabaco e
pouca ponderação nos actos a tomar. Esta por vezes é um enigma.
Imprevisível e fleumática, Myrtle tem na morte de uma fã um
momento de mudança da sua vida, perturbando-a mais do que seria
expectável. Existe um momento particularmente marcante e
desconcertante quando Myrtle começa a bater com a cabeça na parede,
ferindo-se gravemente, partindo os seus óculos, surgindo diante nós
num estado entre a loucura e a fragilidade. É impressionante ver a forma como esta mulher se descontrola e
praticamente se destrói diante nós sem que praticamente possamos
fazer nada. O seu olhar ferido inquieta-nos. Ela parece ser a sua
maior inimiga, mas também a única que poderá sair desta situação,
com Gena Rowlands a conseguir arrebatar-nos com o seu desempenho como esta
mulher que adora as palmas e a adoração do público mas parece
pouco preparada para lidar com o envelhecimento e as consequências que este pode trazer para a sua carreira. Rowlands é o nome
que brilha mais alto, numa obra que conta com um leque diversificado
de personagens, algo que permite a nomes como John Cassavetes, Ben
Gazzara, Joan Blondell sobressaírem. Blondell interpreta com
bastante acerto uma argumentista já envelhecida e ponderada, que
decide levar a protagonista à sua espírita deparando-se com
episódios nem sempre agradáveis na presença de Myrtle. Gazzara
destaca-se como o elemento responsável por conduzir a peça,
procurando mostrar a sua admiração por Myrtle e mantê-la pronta
para o espectáculo teatral, ao mesmo tempo que mantém uma relação matrimonial
estável que contrasta claramente com o turbilhão que envolve o
espectáculo. A certa altura de "Opening Night"
questionamo-nos sobre o comportamento de Myrtle e se será capaz de
protagonizar a peça, apresentando tiques de vedeta a ver a idade a avançar à
la Margo Channing em "All About Eve", numa obra que
explora questões ligadas com o avançar da idade, psicologia,
espiritismo, alcoolismo, devaneios das estrelas e o esbater de
fronteiras entre a peça de teatro e a vida.
A peça de teatro é fulcral para o
enredo, com John Cassavetes a nunca descurar a preparação e
exibição da mesma, bem como as reacções que duas exibições
distintas provocaram no público (se não contarmos com a exibição efectuada na espécie de prólogo). A câmara de filmar por vezes surge
posicionada de forma a deixar-nos como se fôssemos um membro da
plateia, embora facilmente nos coloque também no interior da peça e
até nos seus meandros, com todos os cenários a terem sido decorados
de forma a parecer que estamos mesmo diante de um espectáculo
teatral. Não falta até a vedeta embriagada a chegar à última da
hora, no caso Myrtle, numa obra cinematográfica marcada por personagens com
personalidades muito próprias, com John Cassavetes a deixar-nos
perante um universo narrativo onde este grupo praticamente é
apresentado como uma família disfuncional onde cada membro procura
aguentar o outro de forma a que a peça saia nas melhores condições.
A noite de abertura da peça em Nova Iorque traz momentos de algum
nervosismo, com Myrtle a contribuir para o mesmo ao aparecer
completamente embriagada, com Cassavetes a conseguir deixar-nos
perante uma representação ficcional dos bastidores de uma peculiar
peça de teatro e como esta se articula durante o seu
desenvolvimento. Cassavetes consegue que a narrativa tanto nos
transmita enorme tensão, como logo de seguida desperte um sorriso,
seja este nervoso ou sincero, algo que acontece no último terço
onde Myrtle domina os palcos como poucas vedetas conseguem, surgindo
bem acompanhada por Maurice, com ambos a darem um tom algo farsesco à relação do casal que interpretam, dois elementos que começam a sentir o peso da idade a avançar. O estado físico e psicológico de
Myrtle acaba por afectar a sua personagem, com John Cassavetes a
dotar a obra de alguma complexidade, explorando como a realidade pode
influenciar a ficção e vice-versa (algo que explica como a peça "ganha" diferentes versões devido a Myrtle). Como salienta Matthew Clayfield
do Senses of Cinema, "For
Myrtle, as for Cassavetes, binary oppositions between reality and
fiction, onstage and offstage, performer and audience, and
performance and being, are false oppositions, liable to breakdown and
susceptible to interference". O filme foi praticamente financiado por John Cassavetes, com este a trabalhar mais uma vez de
forma independente, à parte do sistema de Hollywood, algo que lhe permitiu ter várias liberdades criativas e criar mais uma obra
cinematográfica marcante. Com uma intensa interpretação de Gena
Rowlands e uma banda sonora que se ajusta à atmosfera muitas das
vezes tensa que rodeia o filme, "Opening Night" deixa-nos
perante uma actriz que beira a fronteira da loucura, numa obra onde o
cinema e o teatro se reúnem para nos deixarem perante um drama
intenso e marcante.
Título original: "Opening Night".
Título em Portugal: "Noite de Estreia".
Título original: "Opening Night".
Título em Portugal: "Noite de Estreia".
Realizador:
John Cassavetes.
Argumento: John Cassavetes.
Elenco: Gena Rowlands, Ben Gazzara, Joan Blondell, Paul Stewart, Zohra Lampert, John Cassavetes.
Argumento: John Cassavetes.
Elenco: Gena Rowlands, Ben Gazzara, Joan Blondell, Paul Stewart, Zohra Lampert, John Cassavetes.
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